quarta-feira, 31 de março de 2010

É nosso e ninguém tasca!

Há uma disputa em curso que promete dar fim a um dos endereços mais tradicionais de Laranjeiras: o número 24 da Rua Alice, onde há 66 anos está o Bar do Serafim.

Tradicional boteco do bairro, de onde saem por dia uma centena de litros de chope e de petiscos meio portugueses meio nordestinos, vive hoje de incertezas. Para muitos, o bar tinha apenas um dono: o bigodudo e querido Seu Juca, morto ano passado. A história é, no entanto, muito mais complicada. O negócio é dividido entre quatro proprietários, quatro famílias na verdade, e há um espólio que impede a assinatura definitiva da venda do negócio.

Para tristeza dos vizinhos beberrões, interessados no ponto não faltam. Segundo a atual gerente, mulher de um dos proprietários, que está à frente do restaurante, o documento de venda já está assinado, para infelicidade geral de quem fez dali o quintal de casa e teme que o lugar se transforme em mais um desses botecos “de grife”, que tomaram conta da cidade. Fiando-se na morosidade da justiça brasileira, os assíduos frequentadores torcem para que essa pendenga não chegue jamais ao fim.

Apesar de já ter destino certo, os mais fiéis formam – entre um chope e um torresmo – novas sociedades. O assunto predileto de quem se acostumou a sentar entre as mesas de madeira com tampo de mármore é como levar adiante – e fazer rentável – o empreendimento.

Sábado desses, de tardinha, a turma do balcão “fechou negócio” com direito a aperto de mãos e troca de telefones. “Cada um entra com R$ 15 mil e a promessa de manter a equipe e o cardápio”, propôs uma das novas sócias. Comprometidos com a próxima “reunião de diretoria”, todos tentam carregar a certeza: o Serafim é nosso e ninguém tasca.

segunda-feira, 29 de março de 2010

Casa de pensão: uma trajetória de paciência

Quando em janeiro de 2005 decidi morar em Barcelona com o Alexandre, ele dividia um apartamento com figuras meio curiosas. Na verdade, ele sublocava um quartinho do russo que era o inquilino titular. No contrato tácito, ele poderia levar a namorada para uns dias, não pra morar. Ele já estava há três meses lá quando eu cheguei de mala e cuia. Decidimos dizer que eu estava apenas de férias (apesar da bagagem enorme, que ficou embaixo da cama) e que voltaria para Paris. Nesse meio tempo, a gente correu atrás de um apê só pra gente.

Essa busca foi em vão, caímos em golpes, perdemos dinheiro e não alugamos nada. Já vivendo uma situação bem delicada em meio aos russos, resolvemos procurar quartos para casal. Foi aí que encontramos a pensão da Luz Marina, no bairro Gótico, através de um anúncio de jornal. A amazonense marcou um encontro em meio às Ramblas e ficou nos observando de longe. Ao achar que se tratava de um casal confiável, veio ao nosso encontro e nos mostrou o que seria nossa primeira casa nesses seis anos de convivência.

Era um apartamento gigante, num belo prédio antigo, próximo à Praça Real, todo retalhado em quartos pra alugar. O nosso era o maior com geladeira própria, mesa, TV, cama, um armário grandão. Tudo bem feio, estilo Casas Bahia, mas havia uma varanda com vista pra uma pracinha e uma faculdade. Já cansados de não ter onde viver, topamos, pagamos e nos mudamos em três dias.

A vida na pensão foi uma lição. Havia apenas dois banheiros pra umas 15 pessoas, uma cozinha com fogão de quatro bocas e uma máquina de lavar. Pra usar utensílios tão fundamentais, a gente encarava fila com pessoas de nacionalidades variadas. Tinha brasileiros, argentinos, espanhóis, venezuelanos, etc.

Assar um frango era uma batalha. Tínhamos que deixar ali o almoço por horas até que alguém sinalizava a nossa vez. Havia também a convivência bacana de ver as diferentes comidas que saíam daquela cozinha. Aprendemos a fazer uma verdadeira tortilla espanhola e os hábitos dos hermanos.

No banheiro, a convivência era menos pacífica. É nojento dividir uma privada com tantas pessoas, eu vivia com álcool na mão, pra fazer a higiene da louça antes de usar. Adquiri também o hábito – que jamais perdi – de só tomar banho de havaianas.

A Luz tinha uma filhinha adotiva, de uns três anos, vinda da Amazônia, que era minha paixão. Sempre que ela aparecia, a gente brincava, eu mostrava meus brinquedinhos, minha ovelha de pernas longas e fazia teatrinhos, que ela amava. Ali, a gente também exerceu a paciência e nos tornamos ‘os melhores inquilinos’, já que limpávamos tudo, não causávamos transtornos e tal.

Houve até casos de polícia com um casal meio barra pesada, que cismou de brigar aos berros com ameaças graves com facas em punho. Outro casal, esse espanhol, levava comida pro quarto e não lavava a louça. Quando a Luz foi obrigada a invadir o espaço deles por conta de péssimos odores, o que se via era o inferno em forma de sujeira. Um horror!

Saímos de lá quando voltamos para o Brasil, em novembro de 2005. De volta à Copacabana, minha mãe nos presenteou com uma temporada num pequeno loft só pra gente, na rua Anita Garibaldi, até que a vida por aqui voltasse aos trilhos. Depois de quase dois anos longe, voltei a exercer o meu direito à privada própria, deixando de lado a embalagem de álcool líquido que havia se tornado minha amiga inseparável.

quinta-feira, 25 de março de 2010

No século XXI, com a cabeça das nossas avós


A primeira matéria que me pediram pra fazer na finada revista Ponto TV, que sobreviveu poucos meses no JB, foi o lado B do Alemão, vencedor do Big Brother Brasil, em abril de 2007. Ovacionado pelo público, ele levou o prêmio de R$ 1 milhão com 91% dos votos contra sua concorrente. Os editores queriam, no entanto, que eu provasse por A + B que a emissora tinha manipulado o público para a construção de um herói.


Pesava nesta certeza dos editores, fatores como: o triângulo amoroso protagonizado pelo cara, suas atitudes meio grosseiras, a afirmação de que não mantinha compromisso sério com mulheres por mais de três anos e ter sido escolhido pra participar do programa por um olheiro dentro de uma boate de bacanas em São Paulo. Resumindo: tinha tudo pra cair na desgraça das moças que, acredito, são as que mais votam.

O resultado – quem acompanhou, sabe – é que, de fato, ele virou herói e há tempos multiplicou seu milhão. Hoje é estrela de programa de um dos canais a cabo da emissora.

Recentemente, Dado Dolabella ganhou a primeira edição da Fazenda, em outra emissora. Não acompanhei o programa, mas sempre soube que a situação deste ator, estampada em várias revistas do ramo, mostra que suas atitudes nunca foram lá muito corretas. Entre as mais chocantes, o sujeito bateu em mulher. Putz, como é que alguém poderia acreditar que a mulherada iria dar uma grana pra ele e não pra outra candidata?

Tá, são só dois exemplos e, certamente, há mais casos no estilo. Lembrei disso tudo hoje, quando li numa coluna de TV do Globo, que o Dourado está na terceira posição do ranking do site celeb.com.br, da revista Reader’s Digest, atrás apenas do Lula e da Dilma. Como assim? Acho que a piada masculina tem mesmo razão: não dá mesmo para entender mulher.

Nós, hoje em dia, muito mais independentes, não buscamos os fofos, gentis, trabalhadores, simpáticos, que não berrem com a gente? Hmmm, acho que estou sozinha. As mulheres continuam querendo os fortões, machistas e mandões, pra colocá-las nos eixos! Caramba, isso me soa tão démodé. E a emissora tentando dar de moderninha, escalando elenco com homossexuais assumidos pra mostrar a nova realidade mundial.

Como o grande veículo de massa, reflexo de quase tudo o que pensa nossa sociedade, a TV mais uma vez mostra que o mundo continua uma caretice só. Mesmo que, diante das amigas, as mulheres não confessem suas preferências, no anonimato do voto, elas vivem como nossas avós. Sei não, acho que a gente ainda tem que comer muito feijão com arroz pra suportar, entender e conviver com o mundo tal qual ele se apresenta hoje.



terça-feira, 23 de março de 2010

C'est bizarre! Qué raro! Ou, simplesmente, mundo estranho


Qual o real significado da palavra bizarro? O aurélio aponta, entre outras definições, esquisito. Como sempre tive uma postura, digamos, pró-ativa em matéria de bizarrice, acabo achando que o que chega a ser bizarro pra mim, pode ter uma classificação ainda mais pesada pra você. E vice-versa. Meu contato com o diferente (será que este pode ser um sinônimo?) é sempre bem-vindo. Adoro uma bizarrice! Exceto aquelas mostradas aos domingos em programas de auditório, que expõem em rede nacional deficiências físicas. De resto, topo as empreitadas.


E faço coleção de histórias que, para muitos, têm um sabor indigesto. Adoro pegar o S20 pra chegar à Barra e acho mais emocionante do que montanha-russa de parque americano, fui mordida no bumbum (sabe lá por qual bicho) enquanto desfrutava das delícias dos Lençóis Maranhenses, morei em quarto de pensão em Barcelona, andei 35 quilômetros por conta de tempestade e fui demitida sumariamente do posto de babá, por deixar a porta bater com a chave por dentro enquanto tentava apartar a briga escada abaixo entre duas crianças de 3 e 5 anos.


Fora os extremos, um dos momentos estranhos que já vivi foi conhecer a cidade de Mucugê, interior da Bahia, encravada na deslumbrante Chapada Diamantina. Até aí só boas indicações. Só até aí. A cidade se vangloria de ter e manter um cemitério construído no estilo bizantino como forma de atrair turistas. Na onda da principal atração local, na praça central há um carrinho em forma de caixão pra entregar delivery quem passa da conta nas bebidas alcoólicas (fiz a foto, que abre este post, mas estava beeem sóbria!).

Outra esquisitice foi percorrer os esgotos de Paris. Ok, ok, na França jornalista não paga entrada em museus públicos. Valendo-me do benefício, não paguei e entrei pra sentir um dos piores fedores da minha vida. Apesar do desconforto, a experiência vale a pena, por imaginar há quantos séculos aquilo foi planejado e construído.


Aliás, a França não é só glamour como vendem os folhetos de viagem. Em Ceret, cidadezinha turística no pé das montanhas nevadas dos Pirineus, a primeira parada dos visitantes é a Ponte do Diabo e na placa há uma pixação onde se lê ‘ponte dos suicidas’. Isso lá é atração? A construção é bem bonita, como mostra a foto acima, mas bem podia ter sido batizada – ou rebatizada – de outra forma.


Mantendo aquela tal atitude pró-ativa na busca por bizarrices, às vezes, mesmo desconfiada, sigo adiante nas minhas ideias. Ano passado, a cara dos amigos e da família quando disse que iria para a Ilha de Marajó passar uns dias de folga era de espanto. “Querem ver miséria?” De fato, a pobreza é visível por todos os cantos. A ilha, no entanto, tem muitos encantos, como ver búfalos como se fossem cavalos andando pelas ruelas (foto abaixo), belas praias de rio e hospitalidade de primeira, que nos leva a escutar aquelas histórias que só em cantões do Brasil a gente ouve e se delicia, entendendo melhor como vive o povo brasileiro.



Aliás, nestas incursões pelo país, já passei pela bizarrice de ser observadas por uma família de porquinhos enquanto fazia xixi numa parada de ônibus entre o Maranhão e o Piauí. Há algo mais estranho do que cruzar o interior destes dois estados em ônibus de linha, a famosa "Marinete"? Claro que tem – pra mim. De repente, não pra você.

segunda-feira, 22 de março de 2010

Somos todos brasileiros, graças a Deus!



“Nossa Senhora e Nosso Senhor Jesus Cristo estão acima. Os caboclos vêm abaixo, o meu é o Tupinaná”. Esta frase é de um sujeito boa praça que frequenta o salão vazio do Bar do Serafim, na rua Alice, aos sábados. A hierarquia religiosa do rapaz em questão é bem curiosa, mistura a Santíssima Trindade com o candomblé. Vai entender. Mas, cá entre nós, há no Brasil alguém que reze por uma só cartilha?


Nossa confusão é tão grande que até o IBGE resolveu ir a fundo na pendenga e vai lançar a campanha, para a enquete que será feita esse ano, cujo mote diz “Neste Censo, declare seu amor ao seu Orixá/Diga que é do Santo, diga que é do Gunzu, diga que é do Axé/Pois quem é de Umbanda, quem é de Candomblé/Não pode ter vergonha, tem que dizer que é!”. Quem sabe desta forma, as pessoas fujam da resposta fácil ‘católico’, e revelem de fato qual é sua crença.

Eu mesma, que me autodenomino católica, volta e meia me pego em pensamentos espíritas e, na ingênua ansiedade, já me consultei com várias cartomantes. Realidade mais que nossa, minha madrinha no catolicismo há tempos é budista e – acho eu – nunca soube rezar uma Ave Maria. Dane-se: ela faz parte de um seleto grupo, daqueles que se dão sem medidas ao amor ao próximo, repetido nas missas que eu muito frequentei rezadas pelos padres do Santo Agostinho, na Santa Mônica.

A minha confusão vai além: tenho certeza que os mortos estão sempre ao meu lado. Volta e meia, bato um papo com a antiga proprietária do meu apartamento e sempre senti a presença da minha avó quando morei na casa dela, depois de sua morte. Em outro momento, ocupei o apartamento de uma tia que partiu pra uma melhor, e também tinha lá minha certeza de que ela estava ali. E nunca senti medo, se elas vêm é porque querem estar perto de mim. Se fosse realmente uma católica fervorosa, teria certeza de que elas estão no paraíso e jamais voltariam pra falar comigo. Será?

Diz a Rô que sua mãe viu certa vez um homem negro, boa pinta com a cara boa, com as mangas da camisa dobradas na alturas dos cotovelos, observando as duas fazendo arrumações no armário. Não é que tempos depois, ela fisgou o Aluisio, sujeito com essas descrições? Tá, a Rô é mineira, conta que a mãe fazia os filhos ajoelharem pra rezar com a “palha benta” queimando pra espantar os raios durante os temporais. Eita povo estranho, sô! E depois dizem que lugar de sincretismo é a Bahia. Vai passar uma tarde com a amiga mineira pra ver quem tem razão.

Carioca clássica, minha sogra é do candomblé. Mas não tem santo dia que ela não me conte que foi batizada, fez comunhão e crisma. Muito depois, ela raspou com o santo, lá no terreiro, mas volta e meia está rezando numa igreja do Centro da cidade e não perde uma festa do dia de São Jorge. Além disso, acredita nos búzios e nas cartas. E, então, a sogra é católica ou macumbeira? Acho que a resposta certa é “ela é brasileira”.

Outro grande exemplo vem de um amigo que está longe, no Planalto. Arthur segue à risca a música de Raulzito: “já fui Pantera, já fui hippie, beatnik, tinha o símbolo da paz, pendurado no pescoço porque nego me dizia que era o caminho da salvação”. Hoje frequenta um terreiro lá pelas bandas de Brasília. Amanhã, sabe lá. Há até pouquíssimo tempo era Vicentino de não perder missa aos domingos.

Para resumir, só mesmo a frase brincalhona de outro amigo, o Caio, que, com um risinho irônico, se define: “Sou comunista, graças a Deus!”.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Inteligência pra dar e vender


Há uma frase dita pela minha irmã, Danielle, uma bacharel em direito, que tem martelado na minha cabeça nos últimos tempos. “Há outros tipos de inteligência, além dessas que vocês jornalistas consideram”. Velha rixa, jornalista versus advogados? Alexandre, roxo de raiva, me diria que sim. Apesar das diferenças na formação acadêmica, acho que a Dani tem lá sua razão.


Como repórter, atuei nas áreas de cidade, cultura, TV, informática (sic!), turismo, e lá atrás tive um pouco de contato com a complicada economia. Como lição dos editores, aprendi que meu dever era escrever sem complicações pro leitor. Se a gente levar em conta que muitas dessas funções desempenhei em jornais populares, o ‘descomplicar’ é ainda mais profundo.

Daí, me peguei em 2010 cheia de planos de mudança. Não pela primeira vez, pois entre 2008 e 2009 fiz a conclusão do curso superior de sociologia. E a verdade para os profissionais desta área é muito distante da jornalística. Lá, apaixonada pela volta aos estudos, mergulhei de cabeça. Morria de rir porque nos trabalhos acadêmicos você tem que problematizar as situações. Cuma? A ordem nas redações – a minha verdade - é “traga-me soluções, e não problemas”, o famoso "se vira". Como estava longe da faculdade há uns 10 anos, pensei: este é um outro tipo de inteligência. Ponto pra Dani!

Passado um tempo, um trabalho aqui, outro ali, me peguei querendo aprender leis para desempenhar uma função bacana no recém-criado Instituto Brasileiro de Museus, que abriu dezenas de vagas pelo país. Pra entrar, através de concurso, tem que saber direito administrativo. A minha apostila diz que é direito dos funcionários públicos faltar ao trabalho por dois dias para se alistar como eleitor. Este é, sem dúvida, um outro tipo de inteligência que eu ainda não alcancei. Então para entrar no serviço público não é preciso ter 18 anos, um título de eleitor e estar em dia com as obrigações com a Justiça eleitoral?

Além das apostilas de direito, por que nem tudo são flores no meu mundo, me encontro emburacada num frila onde o assunto é o mundo corporativo (e que, por sinal, não me dá tempo de estudar para o tal concurso bacana). Sabe qual é uma das minhas maiores dificuldade? Nas entrevistas, os caras mesclam palavras em inglês como se fossem sinônimo de português, no estilo "os papéis foram negociados no spot chinês em vez do bench mark padrão, durante o rump up de 2009". TODAS as palavras e expressões têm tradução para a tão cara língua de Camões. Por que diabos então os caras falam em inglês? E pior: misturando as duas línguas, lembrando aquelas cenas patéticas da novela A Indomada, na qual os personagens metiam o inglês no português, sem perder o sotaque nordestino.

Cheia de razão, a Dani certamente me diria: “Viu, há muito mais coisas a entender no mundo do que pensam vocês, pobres jornalistas!” E o pior disso tudo é que, cada vez mais, dou o braço a torcer.



terça-feira, 16 de março de 2010

Pequeno manual de sobrevivência


A pedido do amigo Guilherme Freitas, vou contar nossas peripécias com o bidon, nos meses em que moramos na pequena e pacata Canet en Roussillon, sul da França. Bem, bidon nada mais é do que um galão, desses que o pessoal tem no carro pro caso de faltar gasolina. Lá, a função é outra e muito melhor. Para estar inserido na pequena sociedade canetoise, é preciso, de cara, adquirir o seu. Em seguida, o sujeito leva o seu galão à cave mais próxima e arremata por algo entre 1,50 e 2 euros/litro vinho direto do produtor.


Os olhos do Alexandre com a descoberta da venda de vinho au details (a bebida fica estocada em enormes reservatórios e é retirada por uma bica) brilharam como nunca. O cara pirou, por que não faltavam opções de caves, mercados e até produtores de vinhos da região – local de solo pedregoso, que produz não só tintos e rosés, como também um tipo de branco (Muscat) mais adocicado e servido como aperitivo.

Quando a Lia e o Guilherme – introduzidos ao nosso mundinho pelas amigas Vivian Rangel e Mariana Filgas - cismaram em morar em Canet (e não em Perpignan, como sugeri por email), cumprimos nosso papel. Demos dicas de onde morar, horário do ônibus, preços, tudo como manda o figurino. E, claro, não deixamos de lado a dica mais importante. “Meninos, comprem seu bidon!” Orgulhoso, Alexandre mostrou o nosso de dois litros e explicou como era feita a venda de vinhos por aquelas paradas. Na mesma semana, já era comum esbarrar com um dos dois pelas caves.



No princípio, eles usavam garrafas d’água – como também fazem alguns franceses. Guilherme só foi adquirir o seu em um dos passeios ao Chateau l’Esparrou, um belo castelinho produtor que fica à beira da estrada de Canet. E ainda humilhou o meu Alexandre: pegou logo um de três litros.

O resumo desta história, pra mim, é que amizade de bidon não é de brincadeira. Depois de instalados num belo apartamento na Vieira Souto de Canet, a dupla não cansava de nos fazer convites para bate-papos regados a vinho. De bidon, claro. Só víamos os engarrafados quando a Lia tinha convidados muito ilustres. No começo, ainda me sentia acanhada quando o Guilherme começava a bocejar, mas a cena passou a ser corriqueira e a resposta da amiga também: ‘deixa ele, a gente continua’. Intimidade conquistada, o casal Justo-Arruda cansou de matar o meu, o deles, os nossos bidons em conversas longas madrugada adentro.

sexta-feira, 12 de março de 2010

La Retirada, o triste destino de espanhóis na França



A gerente da minha conta bancária de Perpignan ao saber que meu ofício é o jornalismo, me contou parte de uma história pouco divulgada e muito triste da França. Neta de espanhóis, ela me relatou detalhes de La Retirada, que estava completando 70 anos, em 2009, e seria relembrada com manifestações de várias naturezas. Entusiasmada com a história, contei tudo pro Alexandre e fomos atrás destes eventos pra vender a matéria para alguma revista especializada. O frila nunca emplacou, mas a gente aprendeu um bocado e se emocionou com os relatos, as fotos e as manifestações.

Em 1939, com a queda de Barcelona - último foco de resistência a Franco, que caiu em 26 de janeiro – e o fim da Guerra Civil Espanhola, aconteceu o que muitos estudiosos consideram a maior fuga em massa daquele país. Meio milhão de espanhóis fugiram, muitos a pé, através das montanhas geladas dos Pirineus, em pleno inverno, procurando abrigo no país vizinho. Ao chegarem à França, porém, a acolhida foi em Campos de Concentração, nas localidades de St-Cyprien-Plage, D’Argèles-sur-mer, Gurs, D’Agde, Septfonds, Vernet e Bram.

Seguindo as orientações da minha gerente, o casal Justo-Arruda fez parte de uma marcha, com cerca de 1.500 pessoas, entre a prefeitura de Argèles e a praia, onde estava sendo gravado um documentário e havia uma pequena cidade cenográfica – no exato local de um dos campos de concentração. Ali foi deixado um marco em memória aos mortos. No caminho, familiares pararam e depositaram flores num pequeno monumento já erguido anteriormente em homenagem a esses espanhóis, como se fosse um cemitério (foto acima).



Neste dia, Alexandre (na foto acima) entrevistou um sobrevivente de 101 anos, ex-combatente das Brigadas Republicanas. O velhinho teve que fugir do regime militar e só não acabou num dos campos de concentração porque teve a sorte de não fazer o caminho dos que caíram na enrascada.

Nos dados, pesquisados pela gente, vimos que as precárias condições de vida no lugar chamaram a atenção da comunidade internacional. Entre os que se destacaram na defesa dos refugiados há nomes como Pablo Neruda, então embaixador do Chile em Paris. Ele conseguiu, naquele mesmo ano, “exportar” para o Chile 2.500 exilados. Outros tantos foram para o México e demais países latino-americanos.

Figura importante de La Retirada é uma enfermeira suíça. Elizabeth Eidenbenz conseguiu montar uma maternidade num antigo castelo abandonado, na cidade de Elne, onde nasceram 400 crianças, filhas de refugiados. Num lugar em que a taxa de mortalidade entre os recém-nascidos era de 90%, sobreviver ao parto já era um milagre. Muitos ainda estão vivos. E - até o ano passado - ela também, com quase 100 anos, morando na Suíça.

Hoje, esses lugares – onde havia campos de concentração - são balneários com belíssimas praias, iates e lanchas, frequentados pelas classes média e alta do sul da França. O cineasta catalão Manuel Herga estava produzindo um filme sobre a maternidade de Elne, com foco na bela história de Elizabeth. Se o longa-metragem cheguar aos cinemas do Brasil, a galera vai entender ainda melhor o que aconteceu – e como sofreram – estes espanhóis.

Obs.: Este post é 50% do Alexandre e os outros 50% divididos pela Marcelle e a Mafalda.

quinta-feira, 11 de março de 2010

A culpa é do Maneco




Manoel Carlos sempre foi meu novelista preferido. Seu cenário é o Leblon – bairro onde cheguei com 4 anos e saí com 27. Atualmente moradora de Laranjeiras, sinto saudades de lá. E lamento, do fundo do coração, cada vez que as construtoras ganham a batalha contra as APACs.

É certo que não vejo mais o meu Leblon, agora cheio de nouveau riche e artista de fama repentina. O máximo das glórias, no meu tempo, era ter como vizinhos o casal Lucinha e Ivan Lins. Até tinha milionários, mas eles não eram maioria. Havia de tudo, os endinheirados, que não gostavam da Barra ou achavam Ipanema muito liberal, e os classe média-média, funcionários do Banco do Brasil ou militares, que se espalhavam pelo condomínio dos jornalistas, a Selva de Pedra e os belos predinhos sem elevador. 

A gente frequentava Lucas, Panelão, Degrau, Bozó, Final do Leblon. Vai procurar um desses agora? Resta um ou outro e sempre com aquela cara de ‘estou-tentando-me-modernizar’. No lugar dos antigos, reinam absolutos os chefs grifados pra quem pedir um escalopinho com arroz à piamontesa soa como ofensa. E tome espuma de salmão pra lá, macarrões de palmito pupunha pra cá. Podem me chamar de recalcada, afinal deixei a praia e a água mais perto a que tenho acesso é a piscina do Fluminense. Dou de ombros, gostava da joalheria que consertava relógios na Ataulfo, das lojinhas de sapato onde comprei minhas primeiras Melissinhas, da livraria Argumento pequenininha, sem frescuras. O comércio está todo diferente. No lugar de temakerias, yogoberrys, lojas multimarcas, a gente tinha mais armarinho, sapateiro, loja de ferragens, de tecidos.

Isso sem contar com as casas, antiguinhas bem ao estilo que luta em persistir até hoje na Urca. No meu caminho entre minha casa (aliás, uma delas), na rua San Martin, e a academia de balé, na Dias Ferreira, passava em frente à casa dos sete anões na Rainha Guilhermina. Saudosismo? Pode ser. Devo, no entanto, esquecer: o Leblon cresceu, apareceu e tornou-se bairro de PIB norueguês. Os preços são todos astronômicos.

Dizem as más línguas que a culpa é do Maneco. Dou risada, pois não acredito – ou só um pouco - que ele tenha responsabilidade pela descaracterização do bairro. Mesmo assim, tenho sentindo uma ponta de raiva do meu novelista preferido. A causa é a nova rotina que ele introduziu na minha vida: com aqueles depoimentos, choro compulsivamente todos os dias no final do capítulo de Viver a Vida.

obs.: ok, ok, a foto não é 'da minha época' do Leblon.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Bufê Brasil



O que eu mais gosto nas viagens é a comida. Coisa de gente que tem alma gorda. Como toda minha família é assim, nem ligo. Sigo – com galhardia – a sina dos que estão sempre na luta contra a balança, vivendo neste país que oferece tão diferentes iguarias de norte a sul. Veja só, tem coisa mais sem graça do que ir ao Pará e não comer peixe de rio, castanhas em profusão, tucupi e tacacá?



Bom, eu me jogo sem medo. A experiência do tacacá, agora em dezembro, foi péssima. Aquela gosma causou-me náuseas. Fazer o quê? Experimentar de tudo faz parte do jogo. Na saborosa memória gustativa, ficaram os deliciosos sorvetes, os recheios de cupuaçu, a carne e o queijo de búfala de Marajó e os peixes.


Já em Minas, a orgia gastronômica foi no Xapuri, na Pampulha. Afeee, quanta coisa boa. Carne de porco, regada a cachacinha, bolinhos de aipim, doces caseiros. Mal dava pra levantar depois de tanto comer. Já São Paulo é aquilo. Tiramos onda de mano na badalada rua Aspicuelta, mas fomos nos fartar na festa da Santa Achiropita, seguindo orientações da imprescindível Anastácia (http://anastacianafeira.blogspot.com/) e depois, claro, numa tradicional cantina italiana onde tinha até um galo bizarro de madeira que descia (não lembro bem por quê) e “cantava” no meio do salão.

Quando – em priscas eras – fui ao Maranhão me deliciei com pata de caranguejo, caldo de sururu e moqueca de siri catado, já provado e aprovado em Salvador, quando estive lá pela primeira vez pra cobrir o ‘show-concerto’ do Pavarotti, pelo jornal O Dia. Com Alexandre, a gente se fartou no Iemanjá, também na capital baiana. “E desce mais um acarajé – peloamordedadá!”.

Opa, Dadá é de outro estabelecimento. Quando fui a Salvador pela primeira vez – para cobrir o tal ‘show-concerto’ - tive uma das visões mais felizes para almas gordas. O canal, que fez o convite aos jornalistas, fechou o Varal da Dadá, no bairro Alto das Pombas, para o jantar após a cobertura do evento. Todos os pratos – dispostos em bufê – só pra gente.

Pra mim, comida boa tem em todo canto, mas cada uma com seu Q especial. Ao meu paladar, a Bahia é campeã, mas eu sou suspeita, talvez pelos laços de família que me unem ao estado. Afinal, quando fui a primeira moradora da casa da minha avó, após sua morte, a única garrafinha que resistia na geladeira era de azeite de dendê. Como eu trairia, então, minha tão amada vó Gilda?

(As fotos foram feitas no mercado Ver-o-Peso, em Belém, dezembro de 2009)

Autonomia de vida



Outro dia peguei um táxi e, como de costume, puxei papo. Adoro a classe, apesar de achar que corrida de R$ 19 tem que ter o troco de R$ 1. Algo que muitos desconsideram ou fingem que. Também reprimo preços fechados para turistas visitarem o Corcovado – aqui pertinho da minha casa nas Laranjeiras – o que torna o assunto recorrente nas minhas corridas, já que meu costume é subir pra pegar o Rebouças, passando em frente ao cartão-postal.

Posto isso, gosto dos caras. Mas o papo da autonomia me tira do sério. Neste dia, que falei lá na primeira frase, o moço me contou que ele é o ‘motorista-auxiliar’ e aluga o pacote: direito a ser ajudante do proprietário e, com isso, usar o automóvel. Entendi, entendi. O dono do veículo não utiliza seu direito conquistado junto à Prefeitura de ‘autônomo-titular’. Sabe lá se é assim que eles se autodenominam.

Então, o que faz o cara? Aluga por R$ 2,6 mil o pacote pra este motorista-meu-amigo, que trabalha umas 12 horas diárias pra fazer mais uns R$ 2,5 mil. Cuma? Então, conseguir da prefeitura a autonomia já lhe dá quase o sustento? Daí, ele compra o carro e pega um desempregado desesperado pra gerar sua própria receita. Desculpa, não entendi. Não seria esta autonomia uma autorização para a pessoa ser taxista? Talvez não. Primeiro o cara compra o carro e depois aguarda promessas de campanha de que serão oferecidas mais autonomias pela administração pública. Isso me cheira a Tostines (é fresquinho por que é bom ou...). Se o sujeito precisa de carro pra ter autonomia, como vai conseguir os auxílios garantidos por lei pra comprar um automóvel-táxi?

As respostas são várias e há muitos anos se debate o problema. Ele, apesar de velho, não me desce goela abaixo. Pra mim, motorista-titular é o que trabalha. E ele tem (ou deveria ter) como provar isso na Justiça trabalhista. Neste caso relatado, o moço me mostrou toda sua organização, com anotações sobre quilometragens e gastos com combustível.

Mas o motorista-amigo não suporta mais trabalhar por dois. Vai vender sua casa pra comprar uma autonomia (como assim?), um carro e passar apenas a pagar as prestações do automóvel. O sonho dele é ter um Meriva, como manda agora a ordem da praça.

Sugeri, quase na porta de casa, que ele procurasse a Defensoria Pública – quem sabe uma assessoria gratuita jurídica o auxiliaria a ter o direito a uma autonomia e só ficar pendurado pela aquisição do carro? Ele não acredita na Justiça e nem no auxílio jurídico. Assim como muitos outros brasileiros, meu amigo taxista só crê que para ser cidadão neste país é preciso ter grana, muita grana.

segunda-feira, 8 de março de 2010

Fidelidade de serviços só presta com chope

Essa papo de fidelidade de serviços nunca foi muito a minha praia. Ops, antes de qualquer dúvida, explico: fidelidade marital eu tenho até de sobra. M’Arrudão é meu, ninguém tasca, e eu não o deixo por ninguém. Fora meu Alexandre, não sou fiel. Não imagino – e nem quero - debater a relação com aquela manicure que tira um bife atrás do outro. Prefiro procurar o salão, a lavanderia, o sapateiro, a operadora de celular ao lado.

Mesmo detestando esta tal fidelidade de serviços, não nego que em boteco a história é outra. E tudo é mais sério. O contrato tácito é seguido à risca. Depois que a relação de confiança está estabelecida, tudo são flores em locais não tão glamurosos, mas amadíssimos pelo casal Justo-Arruda.

Quando estávamaos na Domingos Ferreira, em Copa, a paixão do casal – sem direito a ménage à trois – chamava-se Lene, garçonete do Café e Bar Pierrot. Lá, nós tínhamos direito a mesinhas e cadeiras (leia-se bancos e barris) mesmo nos dias mais lotados, com cervejas geladíssimas repostas sem delongas.

Em 2008, pela força da mudança para a Prudente de Moraes, em Ipanema, a fidelidade pela Lene acabou. Durante a bela campanha do Fluminense rumo à Libertadores, nos tornamos amigos do seu Zé, no Café e Bar da esquina das ruas Vinícius de Moraes e Nascimento Silva. A grana andava curta, ver jogo de futebol em casa com M’Arrudão é mais entediante do que missa de sétimo dia e o bar nos oferecia cerveja gelada no balcão com direito a TV.

De tanto me esgoelar pelo esquete tricolor, seu Zé se apegou – e nós também! A cada vitória, ele nos dava uma cerveja grátis. Pra desespero do Alexandre (que é um vascaíno de meia-tigela), todo mundo no boteco passou a chamá-lo de tricolor. Seu Zé gostou tanto da gente que se eu passasse à tarde apenas para um cafezinho, ele fazia questão de dizer que era cortesia da casa. Jamais cobrava. Na despedida de Ipanema, lotei o bar com os amigos do coração. Seu Zé até se emocionou com freguesia tão seleta e ensaiou lágrimas quando disse que estava partindo pra França, em missão de estudos.

Agora, em Laranjeiras, nosso coração está a mil pelo Cris e a turma do Serafim (Serafa para os íntimos), na rua Alice. Já conquistamos a saideira gratuita e até o pendura proibido. Bom demais chegar e só falar: “O de sempre, por favor!” As notícias por lá não são as melhores, mas isso daí já é uma outra história...

sábado, 6 de março de 2010

Tem choque de ordem em Paris?



Uma passagem paga em mil vezes sem juros da Air Europa me fez voltar à Paris, em 2007. Foram 21 dias de férias, sozinha. Junto com a passagem paguei mais duas semanas de curso de francês na minha escola do coração, a France Langue da Place Victor Hugo.

Como dei entrada com antecedência, achei que juntaria dinheiro ao longo dos meses pros gastos na minha cidade preferida no mundo. Esse negócio de economizar nunca foi comigo e, nas vésperas da viagem, tinha o básico pra ficar na Cité Universitaire e pagar o bandejão. Ia também passar uns dias na casa da Manu, irmã da Carol Zappita, em Londres. Ou seja, mais gastos – bem gastos, mas não tinha de onde sair a grana. Afinal na época era funcionária do JB, um tipo de sujeito que não consegue fazer graça nem com as contas do mês, imaginem viagem à Europa.

Corri então pra minha mãe e pedi: “faz aí uns chaveiros com fitinhas do Senhor do Bonfim e umas pedritas brazucas, vou vender no curso”. Ao chegar em Paris, quem disse que eu tinha coragem de oferecer os penduricalhos pros colegas internacionais? A bagagem estava, no entanto, lotada de souvenirs by dona Eliana.

Não tive dúvidas: vou camelotar. Discretamente, já que tinha medo de ser pega pelo choque de ordem do Bertrand Delanöe. E fui. Peguei espaço na feirinha da Place de Luxembourg, espalhei os chaveiros por cima de um lenço lindo, e fiz sucesso. Vendi pra burro. O que sobrou, desovei batendo de porta em porta, tal qual vendedora da Avon.

Et voilà. Com a receita, conheci a casa do Monet (foto), em Giverny, o Parque Asterix e tomei chopes maravilhosos em Bruxelas.

quinta-feira, 4 de março de 2010

Na Espanha, em rede nacional



Não foi só no asilo-abrigo que tive minha celebridade-relâmpago na Europa. Quando morei em Barcelona, acompanhando estudos do Alexandre, caí de pára-quedas como vendedora de uma loja de souvenirs, no bairro Gótico.

Cheguei sem falar uma palavra de espanhol e muito menos de catalão. O que, segundo o amigo mezzo argentino mezzo brasileiro que me arrumou o trampo, não havia de ser nada. Ensinaram-me umas palavrinhas básicas e me joguei na empreitada. Não era lá tão divertido, mas valia um bom troco.

O grande problema da loja – chamada Pulpos, na calle Boquería (foto) – eram os ciganos que atacavam o comércio atrás de qualquer mercadoria. Como não sou espanhola, muito menos catalã e nada tenho contra os gitanos, não achava que isso me causaria problemas.

Ledo engano. Os caras – aliás, as crianças ciganinhas - me perturbavam. Acho que percebiam minha fragilidade com a língua e caíam em cima da mercadoria exposta no meu turno. Até em meio à roda de dança eles me meteram, e roubavam o que viam pela frente. No dia seguinte, ainda vinham me afrontar, portando na esquina, em frente à loja, os óculos, chapéus e bolsas, roubados na véspera.

Comecei a ficar danada. Os outros funcionários me incentivavam a bater nos moleques. E eu pensava: “Deus me livre. Estão todos loucos. Não vou fazer nada.” Até que um dia, de tampo cheio, dei um chilique: berrei, empurrei, me descabelei, botei todo mundo pra fora. E eles nada roubaram. Bingo, pensei, aprendi a lidar com a situação.

Mal sabia que havia uma equipe de TV, tipo Jornal Nacional num momento câmera escondida, flagrando os furtos desta galerinha. E euzinha fui a grande heroína catalã. Apareci em rede nacional, horário nobre, expulsando os pequenos pivetes da região turística de Barcelona.

Fui tão cumprimentada no dia seguinte, pelos comerciantes da rua – já cansados de serem furtados -, que me senti até importante.

quarta-feira, 3 de março de 2010

Sem-teto. E daí?

Abrigo na França, pra quem morou em quarto de pensão em Barcelona, é papa fina. Com o incêndio, o edifício foi interditado e fomos levados ao tal abrigo-asilo (na foto). O quarto tinha duas camas de solteiro, mesa, frigobar, placa de fogão (daquelas elétricas), mesa, cadeira, banheiro privativo e – luxo dos luxos – uma varanda com vista pras montanhas nevadas nos Pirineus. Isso sem contar com a sensacional calefação em meio a um inverno rigorosíssimo!

Como o casal Justo-Arruda já estava acostumado a readaptações, rapidinho estávamos com nossos apetrechos básicos de sobrevivência: funil e papel higiênico pra coar o café, saca-rolhas e laptop. Surpresa mesmo foi descobrir que a Prefeitura de Canet estava zelando por nós, pelas nossas refeições e, para a felicidade geral da nação, do nosso vinho também!

No abrigo, descobri algo que levarei pra vida: vinho e queijo são um direito de todos. Cada sem-teto recebia, por refeição, uma garrafinha de 350 ml e, ao final, depois de entrada e prato principal, um bom quadradinho de camembert (ou brie, emmenthal, gruyère ...).

Como éramos obrigados a nos sentar na mesa dos desabrigados, ficamos meio famosos. Além de sermos os únicos jovens, entre as senhorinhas de 80 anos, muitos deles nunca tinham visto um brasileiro ao vivo! Resultado: mimos pra todo lado. Cada prato que chegava à mesa era muito bem explicado. Até o dia que apareceu um tal de rognon. Não consegui entender de jeito algum. Só não comi porque tinha cheiro de xixi. No dicionário, depois do almoço, tive a comprovação – era rim. Nojo!

Foram 15 dias, até que a proprietária me arrumou novo pouso. As refeições do abrigo eram tão aguardadas, que acabei sendo obrigada pelo Alexandre a mentir. Era o dia da grande festa no abrigo e seria servido faisão, como prato principal, e, na sobremesa, crepes regadas a Grand Marnier. Perderia então o grande dia? Tá doido! Fiz de boba, disse que tinha provas em Perpignan e só poderia me mudar no dia seguinte. Foi, sem dúvida, um lauto jantar!

terça-feira, 2 de março de 2010

Tempestade no sul da França? Sei como é isso


Li neste fim de semana que uma tempestade horrível atingiu a França. Sei bem como é isso. Dia 24 de janeiro do ano passado, estava morando em Canet en Roussillon, nos Pirineus, fazendo Sociologia na faculdade de Perpignan. E, como não podia esquecer da labuta, peguei um frila da Abril sobre os pontos turísticos do país. Teria que destrinchar toda a Côte Vermeille, bem ali onde eu estava.

Aproveitando o fim de semana, eu e Alexandre (M’Arrudão para os íntimos) partimos para Port Vendres – onde prometiam os guias locais havia uma megafeira de artesanato, frutas, embutidos, vinhos sensacionais. Ou seja, belas fotos e muitas histórias. De ônibus, chegamos fácil, fácil. Três horas depois, trabalho cumprido, tentamos partir para o próximo porto, Banyuls Sur Mer, logo ao lado.

No ponto do ônibus, que faz toda a Côte Vermeille, ouvimos os primeiros sinais de que a situação não estava nada bem. A motorista que passou se negou a nos levar a qualquer lugar. Era catástrofe das brabas. Aos berros nos disse que não havia mais ônibus e que deveríamos ir para casa. Casa? A 40 km dali?

Preocupados, fomos para a estação de trem. Não havia viv’alma. E nem perspectiva. A tempestade já estava por ali e a eletricidade havia sido cortada. Sem saber o que fazer, voltamos para o Centro. A ventania começou a apertar. Depois, lemos nos jornais que a velocidade do vento chegou a 180 km/h. Nem os restaurantes permaneciam abertos. O que fazer?

Opa, perrengue é com a gente. Já acostumados a caminhar, fomos em direção a Collioure – uma Búzios local – procurar abrigo. No caminho, a tempête já nos arrastava (literalmente), pessoas procuravam abrigos até no cemitério e mal conseguíamos caminhar na estrada.

Em meio ao vendaval encontramos um supermercado (Lidl) com as portas semiabertas, sem luz e pedimos ajuda. As funcionárias chamaram o carro da polícia e pediram que nos levassem até o próximo hotel. Eles se negaram. Aí veio a situação dramática: o vento era tão forte que eu quase voei (ok, ok, estava com menos uns quilinhos). Os guardas, preocupados, meteram a gente dentro do carro e nos levaram pra Collioure. Lá, arrumamos um hotel pra dormir. Tudo fechado – nem vinhozinho na mochila e muito menos queijo. Collioure é mais resguardada do vento e, mesmo sem luz, as pessoas estavam nas ruas, meio “curtindo” aquela situação, vendo a “ressaca”. Quando a luz voltou à cidade, corremos pro mercado e fizemos uma compra quase bíblica: vinho e pão.

A tragédia estava só começando. A proprietária do estúdio onde morávamos telefonou e jogou a maior bomba do dia: “Com a ventania, o prédio pegou fogo, estou preocupada com vocês, onde se meteram? Acho, no entanto, que o nosso apartamento nada sofreu”. Ficamos eu e M’Arrudão, a quase 40 quilômetros de casa, sem saber se tudo o que tínhamos na vida estava queimado. No dia seguinte, 25 de janeiro, era aniversário dele. Voltaríamos de trem – antes de toda a confusão, havíamos pensado em fazer uma feijuca daquelas pra data.

Quem disse que o trem voltou? A nossa preocupação a mil, não nos permitia ficar naquela cidade linda, apenas contemplando. Decidimos pegar a estrada: a pé. Foram 35 quilômetros. Quase um dia todo de caminhada. A família ligou, deu os parabéns e mal podia entender o que estava nos acontecendo.

Ao chegar em Canet, fomos encaminhados pela polícia local ao nosso estúdio (todo negro de fuligem), onde apenas pudemos fazer uma pequena mochila e sair escoltados. O prédio foi interditado. E nosso destino foi um abrigo da prefeitura de Canet, onde moram idosos e hospendam-se policiais. Pas mal. Mas isso é uma outra história...

A PERGUNTA MAIS ODIADA DO MUNDO

Ceratocone bem parece nome de planta da Amazônia. Não é. Trata-se de uma deformação que floresce na córnea, aquela membrana transparente dos olhos. A consequência é uma visão meio turva do mundo, como um quadro impressionista. A solução, num primeiro momento, é simples: basta colocar lentes rígidas que, ao contato com a lágrima, faz com que os portadores vejam até o que não querem.

Diagnóstico feito, lentes encomendadas, podemos partir pra vida. A história nem sempre é linear. Há pequenas manchas – que aparecem como gotículas nas plantas em dias de chuva. Há também a intolerância à claridade e o desgaste das córneas pelo uso contínuo do aparato. E olha que, hoje em dia, já há lentes duras com bordas de silicone, bem ao estilo da pizza com bordas de catupiry.

Eis então que surge a tão famigerada pergunta: “Ué, não está vendo nada, por que você não coloca os óculos?” Ahrrrrrrrrrrrrrg. Então, se a solução para o mal é usar lentes, por que diabos os portadores poderiam estar de óculos, que não fazem o tão bem-vindo contato entre a córnea em cone e as lágrimas? A resposta sai sem a menor pretensão de convencer o indagador, neste momento travestido de torturador: “Não adianta.”

Daí, você acredita que esta pergunta não mais será feita e – ufa! – nunca mais será preciso voltar para a repetida resposta, sempre acompanhada da cara de que ‘nunca vou convencer’. Os torturadores, porém, estão por toda parte e repetem a indagação mais vezes do que pipocam manchetes de corrupção em Brasília.

Pode até parecer mania de perseguição. E, tenho que confessar, é. Por não ser tão comum, muita gente desconhece esta singela deformação que transforma alguns pares de olhos por aí em cones, daqueles vendidos em temakerias, não em floriculturas.